Um livre e um filme relatam a perseguição nazista aos homossexuais.
Como falar do passado homossexual sendo católico, casado e pai de três filhos? Como contar aos amigos que viveu os horrores de um campo de concentração nazista, sem dizer o motivo? Como pedir ao Estado francês reparação por tortura num campo alemão em território francês, a Alsácia ocupada, sem falar de seu homossexualismo? Prisão, tortura, humilhação e vergonha foram o saldo dos melhores anos da vida de Pierre Seel, de 78 anos.
Um dia, ele resolveu ter o direito de existir plenamente, inteiro. Primeiramente, através de um livro Moi, Pierre Seel, Déporté Homosexuel. Depois, no documentário lançado no fim do ano passado em Paris, Paragraphe 175, que dá voz a alguns sobreviventes dos campos nazistas, deportados pela lei alemã de1871 - que passou a vigorar na Alsácia ocupada, cujo parágrafo 175 incriminava pessoas que cometiam "atos contra a natureza".
A história de Pierre Seel, feito prisoneiro em um campo de concentração aos 17 anos, depois engajado como soldado do exército nazista, como muitos alsacianos obrigados a combater pelos alemães, foi finalmente conhecida em detalhes quando ele resolveu escrever o livro. Bem documentado e extremamente bem escrito, Moi, Pierre Seel, Déporté Homosexuel, é a história emocionante do calvário de Seel no campo nazista e no front da Segunda Guerra Mundial. Feito com o incentivo e colaboração do escritor Jean Le Bitoux, o livro foi lançado na França em 1994, pela Editora Calmann-Lévy.
Um dos momentos mais dramáticos do período passado no campo foi a trágica morte de Jo, o primeiro amor de Pierre Seel e, como ele, habitante da pequena cidade de Mulhouse. Ao som de cantatas de Bach, os alemães levaram Jo ao centro do campo, despiram-no e lançaram sobre ele os cães para devorá-lo vivo. Até hoje Pierre não sabe por que motivo Jo foi morto, já que o campo não era de extermínio, mas de trabalhos forçados. Em seus pesadelos, a visão da cena bárbara continua a acordá-lo de noite.
"Resolvi romper o silêncio para não ser cùmplice dos alemães. Descobri que se eu não contasse minha história me colocaria na posição de cùmplice dos carrascos nazistas", conta Pierre Seel, que vive hoje em Toulouse com sua pequena aposentadoria de 714 euros.
Das torturas, sevicias, fome e frio durante a guerra, Pierre Seel não tinha coragem de falar. Ao voltar do campo, trancou-se em seu quarto e resolveu esquecer o pesadelo. Não conversava com seus pais sobre o motivo de sua prisão. A narrativa de sua confissão à mãe doente, que insistia em conhecer as razões de seu sofrimento e de sua tristeza, é um dos momentos mais fortes e emocionantes do livro.
Pierre Seel condenou-se a mais de 40 anos de silêncio e sofrimento até o dia 27 de maio de 1981. Naquela noite, durante um debate, em Toulouse, com dois jornalistas que lançavam um livro sobre a história de um deportado homossexual austríaco, ele resolveu falar. Mesmo assim, seu depoimento, o primeiro de uma vítima francesa da perseguição nazista aos homossexuais, foi dado com a condição de total anonimato. Saiu numa revista, por ocasião do lançamento da peça Bent na França, em 1981.
A decisão de assumir seu passado foi tomada em 1982, depois de ouvir o arcebispo de Estrasburgo pregar contra a salvação dos homossexuais, esses "enfermos". "Contei em uma carta ao arcebispo toda a minha história e mandei uma cópia para minha mulher e para meus três filhos adultos", conta Seel. Depois de mais de 40 anos de sofrimento e homossexualidade recalcada, a confissão soou como um escândalo. Veio o divórcio e o afastamento do filhos e netos.
O livro de Seel é uma leitura obrigatória para quem quer conhecer mais um aspecto da barbária nazista. A lei que permitia perseguir homossexuais vigorou na Alemanha até 1979, quando foi oficialmente revogada. Mas a homofobia não era exclusividade nazista, já que entre 1950 e 1965, 45 mil homossexuais foram condenados com base no Parágrafo 175.
No documentário, o velho Seel declara: "Tenho vergonha pela humanidade''. 0 jovem de 17 anos conheceu o suplício dos campos de concentração de Schirmeck e de Struthof, antes de ser engajado à força no exército alemão, depois da anexação da Alsácia e da Lorena. Esses franceses, obrigados a lutar na Wehrmacht, são conhecidos como os "malgré nous", pois eram forçados a vestir o uniforme alemão e a combater o próprio exército francês.
0 escritor Jean Le Bitoux, presidente da associação Memorial da Deportação Homossexual, foi quem incentivou Seel a contar sua história. Foi também Le Bitoux quem fez as notas históricas que contextualizam os acontecimentos narrados no livro de Seel. Em maio deste ano, Le Bitoux lançará Les Oubliés de la Mémoire (Os Esquecidos da Memória), livro que trata da perseguição dos homossexuais pelas nazistas. Segundo Le Bitoux, no ano passado, a Parlamento alemão votou um pedido de desculpas à comunidade homossexual pelos danos cometidos pelo Parágrafo 175, principalmente entre 1933 e 1969.
Morando hoje num pequeno apartamento popular, ajudado par um amigo, a quem ele dedica seu amor de homossexual finalmente assumido, o primeiro francês a falar publicamente sobre o assunto espera uma reparação do Estado. Mas a coragem de Pierre Seel ainda não foi plenamente recompensada, exceto por uma carteira de deportado civil, recebida um ano depois do lançamento do livro. Ele ainda não teve a reparação que pede na Justiça ao governo francês, pois seu caso enfrenta a rígida burocracia da Secretaria de Estado para Antigos Combatentes e da federação de deportados.
"O primeiro-ministro Lionel Jospin criou em abril de 2000 uma comissão histórica para tratar dos assuntos de deportados civis, entre eles homossexuais, ciganos e republicanos que haviam lutado na Guerra Civil Espanhola. Uma pesquisa histórica já encontrou outras 200 pessoas deportadas na Alsácia por homossexualismo, entre 1941 e 1944", conta Le Bitoux.
A partir daí, renovaram-se as esperanças de Pierre Seel, que continua a frequentar a igreja católica para "falar com Deus". "Tenho necessidade de ir à igreja e rezar", diz.
Hoje, Seel vive como um francês de baixa renda. Depois de pagar o aluguer de cerca de 500 euros, sobra muito pouco da sua aposentadoria. "O governo francês me deve uma reparação por ter permitido que os alemães fizessem o que fizeram comigo", declara. "Mas nem os partidos de esquerda tiveram a coragem de defender a causa dos deportados homossexuais", lamenta Seel, para quem um dos mais emocionantes momentos de sua vida foi o dia em que apertou a mão do prefeito gay de Paris, Bertrand Delanoë, no ano passado, numa cerimônia pùblica em homenagem aos deportados civis.
Apesar da liberalização dos costumes, o ódio aos homossexuais não é coisa do passado. Por ter-se exposto e contado sua vida, Pierre Seel já foi agredido verbalmente dentro de seu próprio prédio. Um dia viu uma suástica desenhada em sua porta. "'O homossexualismo existe no mundo inteiro, mas para as familias ainda é considerado uma tara", diz o corajoso senhor que sabia que ao contar sua vida estaria se afastando, talvez irremediavelmente, de seus três filhos - Denis, professor, Antoine, tradutor, e Agnès, diretora de escola-, que mantiveram um longo silêncio depois que o pai contou publicamente sua história. Hoje, eles se falam ao telefone, mas não convivem mais.
Texte : Leneide Duarte, Carta Capital, 16 de janeiro de 2002.
Photo : Pierre Seel, photographié en 1997 par Orion Delain.
Como falar do passado homossexual sendo católico, casado e pai de três filhos? Como contar aos amigos que viveu os horrores de um campo de concentração nazista, sem dizer o motivo? Como pedir ao Estado francês reparação por tortura num campo alemão em território francês, a Alsácia ocupada, sem falar de seu homossexualismo? Prisão, tortura, humilhação e vergonha foram o saldo dos melhores anos da vida de Pierre Seel, de 78 anos.
Um dia, ele resolveu ter o direito de existir plenamente, inteiro. Primeiramente, através de um livro Moi, Pierre Seel, Déporté Homosexuel. Depois, no documentário lançado no fim do ano passado em Paris, Paragraphe 175, que dá voz a alguns sobreviventes dos campos nazistas, deportados pela lei alemã de1871 - que passou a vigorar na Alsácia ocupada, cujo parágrafo 175 incriminava pessoas que cometiam "atos contra a natureza".
A história de Pierre Seel, feito prisoneiro em um campo de concentração aos 17 anos, depois engajado como soldado do exército nazista, como muitos alsacianos obrigados a combater pelos alemães, foi finalmente conhecida em detalhes quando ele resolveu escrever o livro. Bem documentado e extremamente bem escrito, Moi, Pierre Seel, Déporté Homosexuel, é a história emocionante do calvário de Seel no campo nazista e no front da Segunda Guerra Mundial. Feito com o incentivo e colaboração do escritor Jean Le Bitoux, o livro foi lançado na França em 1994, pela Editora Calmann-Lévy.
Um dos momentos mais dramáticos do período passado no campo foi a trágica morte de Jo, o primeiro amor de Pierre Seel e, como ele, habitante da pequena cidade de Mulhouse. Ao som de cantatas de Bach, os alemães levaram Jo ao centro do campo, despiram-no e lançaram sobre ele os cães para devorá-lo vivo. Até hoje Pierre não sabe por que motivo Jo foi morto, já que o campo não era de extermínio, mas de trabalhos forçados. Em seus pesadelos, a visão da cena bárbara continua a acordá-lo de noite.
"Resolvi romper o silêncio para não ser cùmplice dos alemães. Descobri que se eu não contasse minha história me colocaria na posição de cùmplice dos carrascos nazistas", conta Pierre Seel, que vive hoje em Toulouse com sua pequena aposentadoria de 714 euros.
Das torturas, sevicias, fome e frio durante a guerra, Pierre Seel não tinha coragem de falar. Ao voltar do campo, trancou-se em seu quarto e resolveu esquecer o pesadelo. Não conversava com seus pais sobre o motivo de sua prisão. A narrativa de sua confissão à mãe doente, que insistia em conhecer as razões de seu sofrimento e de sua tristeza, é um dos momentos mais fortes e emocionantes do livro.
Pierre Seel condenou-se a mais de 40 anos de silêncio e sofrimento até o dia 27 de maio de 1981. Naquela noite, durante um debate, em Toulouse, com dois jornalistas que lançavam um livro sobre a história de um deportado homossexual austríaco, ele resolveu falar. Mesmo assim, seu depoimento, o primeiro de uma vítima francesa da perseguição nazista aos homossexuais, foi dado com a condição de total anonimato. Saiu numa revista, por ocasião do lançamento da peça Bent na França, em 1981.
A decisão de assumir seu passado foi tomada em 1982, depois de ouvir o arcebispo de Estrasburgo pregar contra a salvação dos homossexuais, esses "enfermos". "Contei em uma carta ao arcebispo toda a minha história e mandei uma cópia para minha mulher e para meus três filhos adultos", conta Seel. Depois de mais de 40 anos de sofrimento e homossexualidade recalcada, a confissão soou como um escândalo. Veio o divórcio e o afastamento do filhos e netos.
O livro de Seel é uma leitura obrigatória para quem quer conhecer mais um aspecto da barbária nazista. A lei que permitia perseguir homossexuais vigorou na Alemanha até 1979, quando foi oficialmente revogada. Mas a homofobia não era exclusividade nazista, já que entre 1950 e 1965, 45 mil homossexuais foram condenados com base no Parágrafo 175.
No documentário, o velho Seel declara: "Tenho vergonha pela humanidade''. 0 jovem de 17 anos conheceu o suplício dos campos de concentração de Schirmeck e de Struthof, antes de ser engajado à força no exército alemão, depois da anexação da Alsácia e da Lorena. Esses franceses, obrigados a lutar na Wehrmacht, são conhecidos como os "malgré nous", pois eram forçados a vestir o uniforme alemão e a combater o próprio exército francês.
0 escritor Jean Le Bitoux, presidente da associação Memorial da Deportação Homossexual, foi quem incentivou Seel a contar sua história. Foi também Le Bitoux quem fez as notas históricas que contextualizam os acontecimentos narrados no livro de Seel. Em maio deste ano, Le Bitoux lançará Les Oubliés de la Mémoire (Os Esquecidos da Memória), livro que trata da perseguição dos homossexuais pelas nazistas. Segundo Le Bitoux, no ano passado, a Parlamento alemão votou um pedido de desculpas à comunidade homossexual pelos danos cometidos pelo Parágrafo 175, principalmente entre 1933 e 1969.
Morando hoje num pequeno apartamento popular, ajudado par um amigo, a quem ele dedica seu amor de homossexual finalmente assumido, o primeiro francês a falar publicamente sobre o assunto espera uma reparação do Estado. Mas a coragem de Pierre Seel ainda não foi plenamente recompensada, exceto por uma carteira de deportado civil, recebida um ano depois do lançamento do livro. Ele ainda não teve a reparação que pede na Justiça ao governo francês, pois seu caso enfrenta a rígida burocracia da Secretaria de Estado para Antigos Combatentes e da federação de deportados.
"O primeiro-ministro Lionel Jospin criou em abril de 2000 uma comissão histórica para tratar dos assuntos de deportados civis, entre eles homossexuais, ciganos e republicanos que haviam lutado na Guerra Civil Espanhola. Uma pesquisa histórica já encontrou outras 200 pessoas deportadas na Alsácia por homossexualismo, entre 1941 e 1944", conta Le Bitoux.
A partir daí, renovaram-se as esperanças de Pierre Seel, que continua a frequentar a igreja católica para "falar com Deus". "Tenho necessidade de ir à igreja e rezar", diz.
Hoje, Seel vive como um francês de baixa renda. Depois de pagar o aluguer de cerca de 500 euros, sobra muito pouco da sua aposentadoria. "O governo francês me deve uma reparação por ter permitido que os alemães fizessem o que fizeram comigo", declara. "Mas nem os partidos de esquerda tiveram a coragem de defender a causa dos deportados homossexuais", lamenta Seel, para quem um dos mais emocionantes momentos de sua vida foi o dia em que apertou a mão do prefeito gay de Paris, Bertrand Delanoë, no ano passado, numa cerimônia pùblica em homenagem aos deportados civis.
Apesar da liberalização dos costumes, o ódio aos homossexuais não é coisa do passado. Por ter-se exposto e contado sua vida, Pierre Seel já foi agredido verbalmente dentro de seu próprio prédio. Um dia viu uma suástica desenhada em sua porta. "'O homossexualismo existe no mundo inteiro, mas para as familias ainda é considerado uma tara", diz o corajoso senhor que sabia que ao contar sua vida estaria se afastando, talvez irremediavelmente, de seus três filhos - Denis, professor, Antoine, tradutor, e Agnès, diretora de escola-, que mantiveram um longo silêncio depois que o pai contou publicamente sua história. Hoje, eles se falam ao telefone, mas não convivem mais.
Texte : Leneide Duarte, Carta Capital, 16 de janeiro de 2002.
Photo : Pierre Seel, photographié en 1997 par Orion Delain.
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